Volta ao Gelo Continental Patagônico Sul
Relato da Volta ao Gelo Continental Patagônico Sul, realizada em 2014, com início na Ponte do Rio Electrico e fim no povoado de El Chaltén.
Local: Campo de Gelo do Sul da Patagônia – El Chaltén/AR e Chile
Data: Novembro/2014
Percurso: Ponte do Rio Electrico – Refúgio Del Fraile – Playta – Refugio Gorra Blanca – Laguna de Los Esquiles – Campamento Toro – El Chaltén
Distância: 90 Km
Tempo: 7 dias
Participantes: Keila Beckman, Andreina dos Santos, Matheus Couto, Matias Villavicencio, Fede Napoli, Marc Aguiló, Pablo Salaverria
Grau de dificuldade: Difícil
O Local
O campo de gelo do sul da patagônia é uma grande extensão de gelo continental, situada na fronteira entre a patagônia Argentina e a Patagônia Chilena. Com 16.800 km², se estende de norte a sul por 350 km, a cerca de 1500 metros de altitude.
É a terceira maior extensão de gelo continental do mundo, ficando atrás apenas da Antártida e da Groenlândia, e está 85% dentro do território chileno , sendo atravessado de norte a sul pela Cordilheira dos Andes.
Na argentina é denominado “hielo continental patagónico” e no Chile chamado “campo de hielo sur”, para diferenciar de seu campo de hielo norte
Possui um total de 49 glaciares, dentre eles: Upsala (902 km²), Viedma (978 km²) e Perito Moreno (258 km²) na Argentina; Jorge Montt, Pío XI (1 265 km²), O’Higgins, Bernardo, Tyndall, e Grey, no Chile.
No lado chileno há um refúgio, denominado Refúgio Eduardo García Soto, o qual também é conhecido como refugio Gorra Blanca, já que está aos pés do cerro de mesmo nome.
O Grupo
Éramos oito. Oito brasileiros decididos a enfrentar o maior desafio de nossas vidas, até agora, todos com seus sonhos, desejos e ambições particulares. Oito brasileiros a percorrer 90 Km sobre trilhas, rochas, neve e gelo, em 8 dias (sendo dois deles reservados a mau tempo). Mas o clima instável da Patagônia resolveu não colaborar. E não colaborar por todos os 8 dias que durariam a travessia. A previsão era de chuva, vento e neve.
Depois de muitas dúvidas, especulações e de muita conversa, cada um toma a sua decisão. Uma decisão difícil, mas assumida de forma sensata por cada um, de acordo com o que realmente ansiavam com aquela travessia.
O meu anseio, naquele momento, era pisar naquele campo de gelo, não importasse o quão difícil aquilo pudesse ser, não importasse quanta visibilidade eu pudesse ter. Desde que houvesse segurança, viver uma grande experiência era o objetivo maior.
Andreina e Matheus se conectavam perfeitamente às minhas aspirações e, após uma conversa decisiva, decidimos partir nós três para a volta ao gelo continental patagônico sul, dispostos a enfrentar todas as intempéries que estivessem por vir, sempre com muita determinação, companheirismo e confiança na experiência dos nossos guias: Tibo, Fede, Marquito e Pablito, que foram contratados para guiar um grupo de 8 pessoas, e que acabaram, guiando apenas 3 pessoas, pois já haviam sido pagos.
Iniciaríamos a travessia no dia 07/11, porém chovia muito, o que levou nosso guia Tibo a adiar o início da caminhada para o próximo dia. Queimamos, assim, um dia extra que tínhamos para a travessia. Restou-nos, então, 7 dias (sendo 1 dia extra por mal clima)
Permanecemos então em El Chaltén, ora descansando, ora providenciando os últimos equipamentos, ora papeando com os novos amigos, dentre eles a adorável Carol
Emboava, que estava dando uma pausa no seu pedal Giramérica, no povoado argentino, e com a qual tivemos um agradável jantar antes da nossa partida ao gelo.
O Planejado e o Concretizado
Tínhamos 8 dias para realizar a volta ao gelo, sendo 2 deles reservados para mal tempo.
O planejado era pernoitar na Playita (1°dia), Gorra Blanca (2°dia), Circo de los Altares (3° dia), Laguna de los Esquis (4° dia) e Laguna Toro (5° dia).
Ocorre que, diante das condições climáticas que se apresentaram, acabamos pernoitando em Piedra del Fraile (1°dia), Payita (2°dia), Gorra Blanca (3° e 4° dia), Laguna de Los Esquiles (5° dia) e Laguna Toro (6° dia), realizando a travessia em 7 dias, com utilização de um dia reserva, bem como percorrendo toda a extenção de 25 km do campo de gelo em um só dia.
Nossa dia a dia ficou assim:
1° Dia : Ponte do Rio Electrico – Refúgio Piedra del Fraile
2° Dia : Refúgio Piedra del Fraile – Playita
3° Dia : Playita – Refúgio Gorra Blanca
4° Dia : Refúgio Gorra Blanca
5° Dia : Refúgio Gorra Blanca – Laguna de los Esquis
6° Dia : Laguna de los Esquis – Acampamento Toro
7° Dia : Acampamento Toro – El Chaltén
1° Dia: Ponte do Rio Electrico – Refúgio Piedra del Fraile
O dia amanheceu sem chuva, mas mudou drasticamente ao longo do dia.
Partimos de carro em direção ao Rio Electrico, local de início da caminhada. No meio do caminho um belo sol e uns poucos pingos de chuva nos presentearam com um lindo arco-íris. Sinal de bom presságio. É como se a mãe natureza estivesse tentando nos dizer “Fiquem tranquilos. Vai dar tudo certo”.
Descemos do carro, acertamos as últimas coisas e demos início a travessia, debaixo de uma chuvinha fina e com o vento já mostrando a sua força.
Atravessamos a ponte do Rio Electrico, caminhamos sobre um trecho reto de pedrinhas e por fim, seguimos por uma trilha num bosque verdinho de lengas, sem qualquer elevação que pudesse causar algum esforço físico maior.
No decorrer da caminhada a chuva ficou mais forte, motivo pelo qual paramos no Acampamento Piedra del Fraile para aguardar alguma melhora antes de prosseguir até a Playita, já que essa parte da trilha seria mais exposta as intempéries.
Fizemos a nossa pausa dentro do Refúgio lá existente, em frente a uma pequena lareira, que aquecia nossos corpos gelados da chuva e secava nossas roupas molhadas.
Enquanto esperávamos o tempo melhorar para continuar, tomamos um “té”, recebemos massagem nos pés da Dri, escutamos algumas canções tocadas pelo Matheus no violão e dormimos um pouco. Porém a chuva não diminuiu. E a previsão do tempo passada pelo rádio seria que apenas no dia seguinte a mesma cessaria.
A decisão então foi permanecer em Piedra del Fraile, e passar o resto do dia comendo, se hidratando bem e descansando para encarar 12 horas de caminhada no dia seguinte, até o Refúgio Gorra Blanca.
Jantamos por volta da 8:00 e as 9:00 já estamos na cama.
O dia termina bem para todos, exceto para Matheus, que estava se sentindo um pouco mal. Acredita-se que por conta do bife de chorisso que comeu na noite anterior, durante o jantar com a Carol.
2° Dia: Refúgio Piedra del Fraile – Playita
Matheus amanheceu pior. Estava com muita diarreia e se sentindo fraco. Disse que estava disposto a abortar se seu corpo não aguentasse a caminhada, mas que queria ao menos tentar.
A previsão meteorológica indicava, neste dia, uma janela de bom tempo para subirmos o Passo Marcone. Chuva no final do dia, mas sem vento.
O dia realmente amanheceu sem chuva, porém com muito vento.
Tibo informou, então, que naquelas condições não seria possível subir o Passo Marcone; que se o tempo não melhorasse, teríamos que acampar na Playita .
Isso significava que não teríamos mais chance de subir o Passo pois no dia seguinte o tempo estaria ruim, e no próximo pior ainda. Consequentemente teríamos que usar nossos outros dias em outras trilhas.
Seguimos com a caminhada, então, por volta das 6:00, sem saber se faríamos ou não a volta ao gelo, mas sempre acreditando que faríamos. No meio do caminho me apeguei ao sobrenatural e comecei a fazer todo tipo de promessa para que o tempo melhorasse e nós pudéssemos subir o Passo Marcone.
Trilha bem fácil, ora plana, ora com alguns desníveis, com vista da face noroeste do Fitz Roy.
Atravessamos o Rio Polone pisando sobre as pedras, sem nos molhar, pois seu nível estava bem baixo.
Daí em diante foi só caminhar sobre uma morena bem inclinada e subir mais um pouco para então avistar a linda Playita.
Chegamos à Playita ainda pela manhã, por volta das 11:00, sob uma leve garoa, e soubemos, naquela hora, que as condições no Passo Marcone tinham piorado; que não poderíamos subir naquele dia.
Isso significava o fim da nossa volta ao gelo, já que aquele era o único dia em que se havia previsto uma janela de bom tempo para subirmos.
A única chance que teríamos de dar a volta seria se o tempo melhorasse no dia seguinte, informação que só teríamos no final da tarde, via rádio.
Nessa longa espera por notícias, Matheus tentava se recuperar do mal que lhe acometia para retornar a Chaltén no dia seguinte; Dri e eu, por outro lado, nos pomos a pensar, pensar e pensar.
Foi então que decidimos ter uma conversa franca com Tibo. Fomos até a barraca dele e dissemos o quanto desejávamos fazer a volta ao gelo, o quanto foi duro para nós estar ali, e que se o clima no dia seguinte permitisse, mesmo que minimamente, subir o Passo Marcone para fazermos a volta nós queríamos subir; que estávamos dispostas a caminhar em 1 só dia o que caminharíamos em 2, atravessando o campo de gelo num só tiro, se fosse preciso; que nós conseguiríamos.
Foi então que vimos um brilho nos olhos do guia e de seus três assistente, que ali se encontravam, e saímos da barraca dizendo para ele pensar no que havíamos dito e nos dar a resposta mais tarde.
Logo após, Tibo sai da sua barraca e começa a subir a trilha em direção ao Glaciar Marcone. Eu e Dri nos entreolhamos na hora e abrimos um sorrisão pensando “ele foi ver como o clima está lá”. =D
Voltamos à nossa barraca e algum tempo depois Tibo vai até lá e diz que se não amanhecesse chovendo no dia seguinte, as condições seriam mais favoráveis para a ascensão ao Passo, do que as que se apresentavam por hora (chuva e vento), mas teríamos que partir bem cedinho, pois a tarde o tempo estaria muito pior.
Não nos contivemos de tanta felicidade com uma notícia tão boa. Agora era rezar para não chover e podermos prosseguir com a caminhada.
No final da tarde, já sem aquela garoazinha e com um céu azulão, Tibo nos chama para fazer uma caminhada até o mirador do glaciar Marcone.
Na volta, um arco-íris emoldurava toda a Playita. Mais uma vez a mãe natureza nos dando um bom sinal. =D
3° Dia: Playita – Refúgio Gorra Blanca
O dia amanheceu sem chuva e com um pouco de vento, mas em boas condições para a ascensão. Matheus se sentia melhor e decidiu seguir conosco.
Começamos o trekking em direção ao Glaciar Marcone embaixo de alguns respingos que pareciam chuva, mas eram as águas das pequenas cachoeiras de degelo, que desciam das montanhas a nossa volta, sendo borrifadas pelo vento.
Seguimos por um trecho de pedras, em aclive, no início, com um leve declive até chegar a lagoa do glaciar. O próximo passo foi contornar a lagoa, pela morena até alcançar a base do glaciar.
No glaciar caminhamos inicialmente sem crampons, pisando sobre as pequenas pedras. Quando só restou gelo, colocamos os crampons e seguimos a caminhada em um trecho relativamente plano, contornando gretas abertas e pulando outras menores, que se encontravam escondidas pela neve mas que o Tibo ia nos mostrando onde estavam, até darmos início a uma longa subida, rumo ao campo de gelo.
Enquanto subíamos iniciou-se uma forte nevasca, seguida de vento, o que não agradou nada o nosso guia. Seguíamos subindo sempre, sem mais paradas, além daquela em que colocamos os crampons.
Em determinado momento, o vento começou a soprar mais forte ainda dificultando a caminhada.
Certa hora uma rajada me desequilibrou e eu enrosquei um crampon no outro caindo no gelo de cara no chão. Nada de grave, apenas um machucado no nariz.
Continuamos a subida, devagar e sempre, até alcançarmos um trecho bem íngreme, onde Tibo foi subindo em zigue-zague, fazendo uma espécie de escada com suas pegadas, afundas na neve até metade da perna. Nós seguimos logo atrás, tendo que pisar exatamente nessas pegadas. Para mim o trecho mais perigoso do dia, pois não estávamos encordoados.
Ao final desta subida minhas luvas impermeáveis, já se encontravam encharcadas. Minhas mãos estavam duras e geladas, creio eu que em algum estágio de congelamento. Eu não tinha mais sensibilidade alguma nos dedos .
Tirei as luvas e tentei esquentá-las sem êxito. Marquito me ajudou, então, e a medida que o sangue ia irrigando novamente o tecido eu sentia uma dor muito forte, como se os meus dedo estivesse sendo dilacerados.
Coloquei luvas secas e caminhamos por mais 10 minutos até um ponto onde colocamos as raquetes de neve e nos encordoamos.
Neste momento o vento começou a soprar muito mais forte, varrendo a neve da montanha e deixando o caminho com pouquíssima visibilidade.
Seguimos subindo lentamente, sempre atentos as rajadas de vento que tentavam nos jogar montanha abaixo. “Fuerza en los bastones” gritava Tibo a cada rajada. Hora em que parávamos e fincávamos os bastões no chão com firmeza, até que a rajada passasse.
Nos víamos em meio ao pior clima desde então.
Sabe aquelas cenas de filmes de alta montanha em que os caras estão subindo e são pegos por uma tempestade, com muito vento, muita neve e tal? Foi exatamente assim….
Subida interminável e cansativa, pela constante briga com o vento. Subíamos, subíamos, subíamos e nunca chegávamos, apesar de o fim da subida parecer, aos olhos, muito próximo. Cada vez que eu olhava para cima parecia que estávamos chegando mas quando eu olhava de novo a imagem era exatamente a mesma. É como se não tivéssemos dado um só passo. Uma ilusão de ótica causada pela imensidão branca. Parei então de olhar e me concentrei apenas em dar um passo após o outro, pois naquele momento eu já estava tão exausta que minhas pernas não respondiam mais.
Eu não tinha mais forças para subir, mas eu sabia que não podia parar ali, no meio da montanha naquele clima infernal. Os riscos eram muito grandes caso algo viesse a dar errado. E foi justamente, nesse momento que eu ultrapassei o meu limite, pela primeira vez na vida. Momento em que o meu corpo não respondia mais; momento em que eu precisei conversar com as minhas pernas (“mais um passo, mais um passo… vamos lá, mais um passo”) para que elas não me deixassem ir ao chão; momento em que eu arranjei forças de algum lugar extraordinário para continuar caminhando até o final daquela montanha, quando alcançamos finalmente o campo de gelo, com as mão completamente duras em volta dos bastões, sem conseguir sentir ou mexer um dedo sequer.
A uns 100 metros do refúgio Gorra Blanca quase desmaiei de tanta exaustão. Senti meu corpo amolecendo, querendo ir ao chão. Parei de andar nesse momento e consequentemente a corda esticou, fazendo com que Tibo logo fosse ao meu encontro, ver o que se passava.
Vendo meu estado, Tibo tirou a mochila das minhas costas e eu segui me arrastando, sem até o refúgio, mas com a sensação de que ela ainda estava lá.
Foi incrível a sensação de entrar naquele lugar quentinho e protegido. Lembro perfeitamente que, assim que entrei, sentei ao lado da Dri, nos abraçamos e chorarmos juntas. Tínhamos conseguido. Foi muito difícil mas estávamos onde nos tanto queríamos estar: no Campo de Gelo da Patagônia.
Matheus foi muito bem durante toda a subida. Ainda não estava curado da diarreia, mas subiu aquilo ali com uma gana tão grande que nada podia deter-lhe. E chegou tão bem que ao final se desencordoou para ir mais a frente e tirar foto de nós chegando ao refúgio.
No refúgio colocamos roupas quentes, tomamos uma chá para nos esquentar, dormimos um pouco e ficamos papeando, juntamente com um outro grupo que chegou logo após a gente, até o cair da noite, quando fomos dormir nas beliches que existem lá. Não vimos nada neste dia, pois nevava muito o tempo todo.
Como a previsão do tempo para o próximo dia era péssima, permanecer no Refúgio Gorra Blanca. Para tirar o atraso caminharíamos, posteriormente, em 1 só dia, todo o campo de gelo, indo direto do Refúgio Gorra Blanca à Laguna de Los Esquies, num percurso total de 25 km.
4° Dia: Refúgio Gorra Blanca
O tempo amanheceu muito ruim, com muita nevasca e vento, e permaneceu assim durante todo o dia, com exceção de uma pequena janela de bom tempo que tivemos, momento em que conseguimos finalmente apreciar toda a grandiosidade do campo de gelo.Nós tínhamos que ter aproveitado a melhora no tempo para ir ao banheiro, conforme orientações do nosso guia, mas ficamos tão encantados com toda aquela imensidão branca, que acabamos esquecendo das orientações do nosso guia.
Em cerca de 15 minutos o tempo mudou completamente e, novamente nos vimos envoltos por uma forte nevasca que não nos deixava enxergar um metro adiante, momento em que adentramos ao refúgio e de lá não mais saímos. Passamos o dia todo conversando, comendo, nos hidratando e descansando para o próximo dia da volta ao gelo continental patagônico sul.
5° Dia: Refúgio Gorra Blanca – Laguna de los Esquis
Esse foi um dia muito puxado. Atravessamos todos os 25 km do campo de gelo em um só tiro, e caminhamos mais 3 Km, aproximadamente, fora do gelo até a Laguna de los Esquis.
Partimos as 7:00 do Refúgio Gorra Blanca rumo a Laguna de los Esquis, encordoados e com raquetes de neve, debaixo de muita nevasca e com um vento muito forte nos empurrando pelas costas. Trecho longo, mas totalmente plano e sem nenhuma greta a mostra o que facilitou muito a caminhada, pois não tivemos que ficar desviando delas. Era apenas uma imensidão branca, reta e lisinha, a qual percorremos, quase que em sua totalidade, enxergando cerca de 3 metros em volta, apenas
Fiquei bem tensa durante toda a travessia do campo de gelo, pois apesar do terreno parecer retinho na verdade era todo coberto por gretas, e nós estávamos passando por pontes de neve que, naquela momento, cobriam essas gretas.
Cada vez que eu pisava em um local com um pouco de depressão, meu coração disparava, pois imaginava que ali pudesse ser uma greta coberta.
Acostumar a andar com as raquetes de neve foi fácil, apesar de elas serem bem incômodas e terem me deixado com uma puta dor no tendão de aquiles, que só veio a passar após meses. Difícil foi aguentar o vento forte nos empurrando a todo instante pelas costas e ter que suportar, em pleno campo de gelo, as nossas roupas e botas encharcadas após muito tempo de caminhada sobre a superfície gelada.
Não é a toa que nossas pausas, a cada 1hora e meia, para alimentação e hidratação não passavam de 5 minutos. Nessas horas, sequer sentávamos. Ficávamos em pé mesmo, em círculo, bem grudados uns aos outros para tentar nos manter mais aquecidos Não podíamos ficar muito tempo parados pois sentíamos muito frio.
Uma dessas pausas ocorreu no Circo de Los Altares, onde chegamos após 4 horas de caminhada, desde o Gorra Blanca. Não vimos uma montanha sequer, mas nós já estávamos felizes só por ter tido a oportunidade de estar lá.
Seguimos por praticamente todo o campo de gelo sem enxergar nada em volta, com os fortes ventos nos empurrando a todo momento até que, restando cerca de 1 hora para sairmos do gelo, o tempo finalmente melhorou e avistamos todo o campo e algumas de suas montanhas, emoldurados por um lindo céu azul e por nuvens que pareciam que brotavam do chão branco. O momento mais lindo do dia, que me arrancou muitas lágrimas de tanta felicidade.
Já que nessa hora tínhamos o sol para nos aquecer, fizemos uma pausa de 15 minutos para curtir mais um pouquinho aquela paisagem estupenda. Tiramos as mochilas, sentamos sobre elas, comemos, bebemos e demos muitas risadas.
Após, andamos por mais 1 hora até finalmente sair do campo de gelo.
Tiramos as raquetes de neve e começamos a descer uma pequena pendente rumo ao Glaciar Viedma (trecho bem tenso e perigoso), onde caminhamos por cerca de 30 minutos até alcançar um terreno de terra e pedras, o qual seguimos, em aclives e declives, até o nosso próximo acampamento, na Laguna de los Esquis.
A longa caminhada fez com que um problema preexistente, mas que estava sobre controle, desse as caras com muita intensidade. Minha perna doía muito ao final daquela longa caminhada no gelo, por conta de uma suposta ciatalgia que me acometeu meses antes da travessia, tornando os últimos metros daquele dia uma dura jornada. Mas tudo deu certo, enfim, e quando finalmente cheguei ao acampamento dei um forte abraço no Tibo e chorei novamente de felicidade por termos conseguido cumprir a meta do dia com louvor.
Assim que chegamos começou a chuviscar. Armadas as barracas, entramos e de lá só saímos no dia seguinte.
6° Dia: Laguna de los Esquis – Acampamento Toro
Após uma noite muito mal dormida, ante os fortes ventos que assolaram o local e que tornaram a barraca extremamente barulhenta, partimos rumo ao Acampamento Toro embaixo de um leve chuvisco e já sentindo a força do vento patagônico.
A caminhada se iniciou por um trecho de subida constante, sobre pedras soltas sobrepostas, algumas vezes cobertas de neve, até chegar a um trecho em que descemos para um vale, onde seguimos reto por um pequeno trecho, para logo iniciar a subida do Passo del Viento. Uma subida interminável que sugou todas as minhas forças, tanto quanto o Passo Marcone, não só diante de uma noite mal dormida que não permitiu que eu me recuperasse do cansaço do dia anterior, mas também pela dor que eu senti na perna desde que saí do campo de gelo, o que tornou a subida do Passo muito mais difícil. Imagina uma pessoa que já não estava com bom condicionamento físico, sem dormir direito e com um problema na perna, subindo uma montanha super inclinada? Eu só podia chorar mesmo de tanta exaustão.
Quando chegamos ao topo daquela montanha paramos para tomar um “té”, para nos aquecermos, e comer algo antes de iniciar a longa descida até o acampamento Toro. Estávamos no topo da montanha, lá naquelas pontinhas nevadas. Foi indescritível a sensação de estar ali e ver toda a beleza do glaciar Túnel, lá embaixo, por qual passaríamos mais tarde. =´) Até esqueci a dor por um momento, mas foi retornar à caminhada para eu voltar a sofrer com ela.
Iniciamos a descida por um trecho bem inclinado coberto de neve, pisando sempre nas pegadas afundadas do Tibo, até chegar a uma trilha num trecho inclinado de pedras. Minha perna doía muito, muito mais que na subida, e por minha causa o ritmo do grupo caiu, já que eu estava muito mais lenta.
Fizemos uma nova pausa com vista para o Glaciar Túnel Inferior e a lagoa que nossos guias apelidaram de “Laguna de las Meninas Fuertes Brasileñas”.
Após, continuamos a seguir a trilha descendo em direção ao glaciar até chegar a um trecho em que a mesma sumia, e só restavam pedras. Era a temível morena do Glaciar Túnel Inferior, que se movia para baixo a cada passada que dávamos.
Conforme caminhávamos, todo o aglomerado de pedras se movia para baixo e nós nos movíamos junto com elas. Cada passo uma angústia de rolar uma pedra nas nossas cabeças ou de ir parar no fundo da enorme greta que existia lá embaixo.
Fiquei com muito medo nessa hora, mas precisei manter o sangue frio, pois o esquema era aquele mesmo, descer com as pedras a cada passo dado, conforme explicou o Tibo.
Fizemos tudo conforme nossos guias nos orientaram e não tivemos qualquer problema. Tudo correu bem e alcançamos o glaciar em segurança.
Após isso andamos cerca de 30 minutos sobre o glaciar e logo já estávamos novamente percorrendo um trecho inclinado de pedras empilhadas, bem mais curto e seguro dessa vez.
Em seguida chegamos a um canal de rochas, o qual percorremos até atingir uma planície cheia de pequenos pedregulhos, as margens do Rio Túnel.
Subimos, então, um pequeno desnível e atravessamos o mesmo rio por uma tirolesa.
Daí em diante seriam apenas mais 30 minutos até o acampamento Toro, em terreno completamente plano, sem nenhum tipo de dificuldade. E era ali que morava o perigo. Do nada começaram a surgir rajadas de ventos fortíssimas, por hora que sopravam de todos os lados.
Tivemos que fazer uma força descomunal com os bastões para conseguirmos vencer as rajadas de vento. Muitas vezes não conseguíamos e seguíamos correndo, sem controle dos nossos corpos, com o vento nos empurrando violentamente pelas costas. Nosso guia foi arrancado do chão e jogado contra as pedras. Matheus foi jogado ao chão e arrastado de joelhos por alguns metros. Eu sai correndo, sendo empurrada por uma rajada e de repente outra rajada me pegou pela lateral, fazendo com que eu desse um giro de 360 graus, e quase caísse ao chão. Um local que parecia tão tranquilo e que se mostrou extremamente perigoso.
Após mais esse desafio do dia, finalmente chegamos ao nosso último acampamento – Acampamento Toro – num lindo bosque de lengas.
Chegando no acampamento colocamos todas as nossas coisas para secar e ficamos conversando, alongando, tomando um “té”, uma sopinha e finalmente fomos jantar e dormir.
O dia terminou com um ar meio melancólico, porque estava acabando a travessia. Não queríamos que acabasse. Gostamos muito de tudo e de todos. Terminar significava cada um voltar para as suas casas e ficar longe uns dos outro. Longe dos amigos queridos que enfrentaram tantas coisas com a gente durante todos esses dias. Restava-nos o consolo de que Chaltén continuaria lá, nossos amigos continuariam lá, e poderíamos retornar para reencontrá-los sempre que quiséssemos.
7° Dia : Acampamento Toro – El Chaltén
Para varia, só um pouquinho, amanheceu chovendo.
Seguimos por uma trilha reta em meio ao bosque de lengas até chegar a um campo aberto. Atravessamos um rio com água pelas canelas e logo após um outro, mais revolto.
Ao atravessar um dos rios por cima de um tronco de árvore semi submerso, meu pé foi empurrado pela correnteza. Me agarrei com todas as minhas forças na árvore que me apoiava, para não ser levada rio abaixo. No fim das contas deu tudo certo. Molhei apenas as pernas.
Subimos um pequeno desnível até chegar a um campo aberto onde atravessamos um outro rio, com um volume bem menor de água, por sobre as pedras.
Começamos a subir, então, a montanha a nossa frente. Uma interminável subida, mas que não chegava nem aos pés do Passo Marcone ou do Passo del Viento. Uma ascenção com trechos com pouco aclive e trechos planos. Do seu topo pudemos avistar o Lago Viedma.
Daí em diante foi só uma longa e demorada descida até El Chaltén, por um bosque de lengas, momento em que minha perna voltou a reclamar.
Finalizamos a travessia no Centro de Visitante de El Chaltén, extremamente felizes por termos vivido uma grande experiência de montanha e ao lado de pessoas tão especiais.
Naquele mesmo dia fomos à Chololateria com nossos amigos para comemorar o sucesso na nossa expedição, e dizer um breve tchau, com um nó na garganta.
A saudade fica, mas El Chaltén continuará lá e nossos amigos também. Nós voltaremos =)